31/12/07

Espírito Tranquilo

Seis horas da manhã. Está escuro ainda. O Sol ainda não nasceu. Sento-me na areia húmida, juntinho ao mar. Ondas vêm, ondas vão. O crepúsculo define-se; os contornos, aos poucos, revelam-se. É um momento de vazio. E eu gosto deste vazio, do instante que antecede o êxtase.
Fecho os olhos. Medito. Mergulho, sem questionamento, nos espaços vazios que ainda existem em mim. Deixo-me ir, cair. Olho o crepúsculo que se desenha no meu centro, os contornos da minha história. Também hoje, o crepúsculo do ano. Como num filme, que apenas posso ver mas que não me pertence, assim vejo os últimos traços dessas memórias, através de um filtro de tranquilidade.
É nesse jardim interior, feito de beleza e serenidade, que admiro as novas flores em botão, ainda, e me deixo acariciar pela brisa carregada de aromas exóticos.
Volto a mim ainda a cheirar à espuma das vagas, a linho e a açafrão. Sorrio, à suavidade do novo néctar que se alquimiza em mim.
"A um espírito tranquilo, o Universo inteiro se rende" Chuang Tsé

28/12/07

Entre o Céu e a Terra

No Vale do Urubamba, um casal parou para descansar. Procurando os Amaru Punku - os Guardiões do Fogo Sagrado -, tinham caminhado em silêncio durante todo o dia, e os seus corpos, apesar de doridos, estavam leves. Sentaram-se na cavidade de uma rocha e, ternamente abraçados, observavam no pedaço de céu azul entre duas montanhas, o repouso do sol e o acordar da lua. O único som audível, era o dos seus corações, que sincronicamente tamborilavam nos seus peitos. Uma ave sagrada sobrevoava, em circulo, o local onde eles se encontravam, velando. A luz era perfeita. E o sentimento de plenitude, crescia dentro e fora deles, numa espiral. Cada vez maior, cada vez maior. Subitamente, no espaço de céu azul, desenhou-se um pêndulo de cristal enorme, oscilando entre uma montanha e outra. Oscilando entre o sol e a lua. Ao observarem esta dança da energia, ambos se olharam. E ele foi o primeiro a comentar "repara, como é perfeito, o sol quer alcançar a lua. olha como ele lhe fala!". Ela observou, e disse "vê, como é a lua que está a seduzir o sol! o sol apenas lhe responde!". "Não - disse-lhe ele - é o sol, o principio masculino, que propõe a atracção à lua". "Enganas-te - responde-lhe ela - o Sol apenas é o movimento vísivel. O mais poderoso é o da lua, a vaga de sedução subtil!". E os comentários continuaram durante muito, muito tempo. Cada um, inconscientemente, defendendo o seu princípio gerador: ele, o Sol, o causal masculino; ela, a lua, o causal feminino. Enquanto os argumentos se desenrolavam, nem um nem outro se apercebeu de que os seus corações se dessincronizaram, e que o céu azul desapareceu, dando lugar a grossas nuvens... E a chuva caiu, pura e fria. O casal protegeu-se da chuva numa gruta ali perto. Estava escuro, húmido e um cheiro a terra molhada invadia-lhes os pulmões. Um grito de uma ave ecoou, poderoso, dentro do espaço, revelando-o de grandes dimensões. Os olhos habituaram-se à penumbra, e frente a esse casal pousou a ave sagrada, o condor, aquele que vela pelos Apus, os ancestrais que habitam no alto das montanhas do Perú. Abraçados, tinham-se de novo unido. E o Condor falou-lhes "Que vos disseram os vossos corações? O sol ou lua primeiro? Qual dos dois é o mais poderoso? E eu digo-vos que quando o sol se aproxima da lua, torna-se nela; e quando a lua se aproxima do sol, torna-se nele. E que ambos, apenas são um ou outro, porque vocês distinguem o céu e a terra. É na terra e no céu, e através de ambos, que percepcionam o sol e a lua. Inti e Quilla, o princípio masculino e o princípio feminino". O casal entreolhou-se interrogativamente, e o condor continuou "sim, homem e mulher. Apenas conseguem distinguir o sol e a lua porque estão na terra, e Pachamama fá-los aceder ao céu. Se estivessem no cosmos, o sol seria apenas uma estrela, e a lua, apenas um satélite de um planeta, sem qualquer ligação entre si. Então, que concluem?" Os olhos do condor brilhavam, prenhes de uma luz verdadeiramente mística, e um halo luminoso envolveu todo o espaço, preenchendo o casal de uma morna e envolvente sensação. Nos seus peitos os corações tornaram-se um. Um só coração, uma só batida, um só desejo, uma só visão. O condor abriu as asas, anunciando a sua partida "A partir de hoje sejam sol e lua, ora um, ora outro, com alegria, com prazer. Cumpram a união do céu e da terra. Sejam a ponte de cristal que os une!". Na alvorada, dentro daquela gruta, acordaram unidos o homem e a mulher, incorporando o Deus Inti e a Deusa Quilla. Jamais o céu e terra deixaram de oscilar um em direcção ao outro, através de uma ponte de amor.

A Dança da Vida

A vida é uma imensa coreografia ao som de risos, palavras, suspiros, choros... Pelo menos a minha. Que convite este: dançar plenamente a minha própria vida! Pergunto-me se tenho jeito para tal, se conseguirei memorizar essa coreografia que é única, se conseguirei estar no ritmo certo, no momento certo, se conseguirei fluir de acto para acto com elegância e dignidade, se conseguirei... se conseguirei.... Sei lá! De facto não sei, mas se calhar a vida não me pede as coisas absurdas que a minha mente e personalidade definem. A vida não me pede para ter memória, ou ritmo, ou elegância, ou sequer fluidez. Pede-me simplesmente para viver, ao ritmo que ela própria impõe, para contactar a memória dos tempos que me habita sem estagnar nela, sem me condicionar pelo conceito (se calhar, bem errado!) de elegância ou dignidade. Viver, simplesmente! Como é fácil escrever, falar, comentar, julgar, considerar! Sobretudo acerca de nós próprios! Será que é mais importante reflectir sobre os passos que se dão, os tempos desses passos, ou somente experimentá-los? Como evitar de sentir todos os reflexos passados e futuros no espelho do presente? Como deixar, simplesmente, de sentir as histórias que se repetem, uma e outra vez? No pior, até com as mesmas personagens. O cenário é outro, os actores diferentes. O guião, o descritivo das personagens, rigorosamente o mesmo. Então, como num grande ensaio, que passos eu dancei fora do tom, de que momentos eu fugi, em que momentos calei quando tinha o papel principal? Sinto-me numa espiral de fogo, imparável e poderosa, na qual entrei de forma consciente e de livre e espontânea vontade. E essa espiral varre, implacável, todos os traços de representações anteriores. Não posso deixar de olhar para tudo o que me deixa, tudo o que finalmente decidi deixar partir, que não me pertence mais, que não me representa nem nunca me representou. Despir-me, somente. Ver os véus de amargura, de indecisão, de medo, de vergonha, de impaciência, de desamor partirem. Deixá-los ir. Despir-me. Desnudar-me. Tornar-me transparente. E o medo, de não me lembrar do que sou por baixo dessas máscaras que partem, daquilo que vai ficando e que eu não lembro nem conheço de mim mesma. E fico vulnerável, ainda mais. Nos fragmentos do ser que ficam quando ele despe a pele das personagens que aceitou representar. E agora? Neste processo que não pode ser travado. Numa espiral de fogo no núcleo de mim mesma. Como se sentisse um rio de magma cá dentro. Como não deixar de pensar no poder dessa explosão, que se antevê, nesse fogo líquido que me enche as veias, nessa luz que trespassa todas as minhas realidades. Nesse eu, que não conheço. Ainda... E um nó que se forma na minha garganta. Um grito que antecipo. Um cântico que nasce! E enquanto, disserto sobre a dança da vida, eis que ela passa e me puxa, apaixonantemente, para mais uma performance. Docemente, docemente.....